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 sobre 

TENTATIVAS DE ESGOTAR UM LUGAR

 

Durante três dias de outubro, em 1974, Georges Perec dedicou-se a observar a Praça de Saint-Sulpice em Paris e tentar registrar em sua escrita tudo aquilo que seu olhar alcançava dali. Interrogava, portanto, o cotidiano mais simples e insuspeito, concedendo atenção a detalhes e cenas corriqueiras que se apresentavam diante do imediato de sua percepção. O livro “Tentativas de esgotar um lugar parisiense” pode ser lido como um levantamento de dados fenomenológicos, descrições e notas que reagem ao encontro com o lugar e que acabam por revelar a própria imanência do olhar. Tal proposição necessariamente solicita e provoca um aguçamento dos sentidos, ao que mais tarde Perec chamaria de “infra-ordinário” e que encontra ressonâncias com o “inframince” duchampiano. Para além daquilo que provê informações aos inventários, catálogos e recenseamentos das narrativas oficiais, interessou ao escritor, por suas tentativas, “descrever o resto: aquilo que geralmente não se nota, que passa despercebido, que não tem importância: o que se passa quando nada se passa, senão o tempo, as pessoas, os carros, as nuvens. ”

A partir de outubro de 2015 a exposição TENTATIVAS DE ESGOSTAR UM LUGAR, reúne no MAES trabalhos de 6 jovens artistas capixabas que lidaram em suas pesquisas, ao longo do Bolsa Ateliê da Secult-ES, com perguntas e exigências semelhantes a do experimento literário de Perec: O que acontece quando nada acontece ?

ANDRÉ ARÇARI se apropriou do material gravado pelas câmeras de monitoramento em seu prédio para compor narrativas aparentemente ordinárias. Em sua sala, o artista expõe ainda a captura em tempo real das imagens do sistema de segurança do próprio MAES, produzindo por este deslocamento um acesso imprevisto à instituição (inclusive com imagens de sua área administrativa) e analisando criticamente esta produção imagética pretensamente neutra. As imagens reconstituem o que seria a paisagem espacial do museu. Abordar diretamente o cotidiano, perscrutar seu enredo e produzir narrativas a partir de vivências foram estratégias utilizadas por duas artistas viajantes, cujas práticas e registros nos lembram a frase de Cildo Meireles, para quem o artista, “como o garimpeiro, vive de procurar o que não perdeu” e também confirmam a anotação de um louco num caderno, recolhida por Manuel Réja em 1907: “Eu viajo para conhecer a minha geografia”. BEATRIZANCHI percorreu cidades com nomes de santos pelo interior do Espírito Santo. A partir do convívio intenso com os lugares, suas pessoas e histórias, a artista trabalhou numa série de diários, desenhos, ensaios fotográficos e escritos em que se fundem referências de sua mitologia pessoal e arte popular. Já POLIANNA DALLA BARBA viajou por diferentes cidades brasileiras e sul-americanas para produzir relatos afetivos, coleções de vestígios incomunicáveis e fotografias que reiteram a condição fragmentada das experiências que viveu em trânsito. Tentativas como as destes artistas, mais que um esgotamento de determinada realidade, tornam-se por fim tarefas de fundação e construção de um outro lugar pela linguagem.

Tentativas como traçar linhas que interceptem o espaço e reconfigurem a experiência correspondem aos esforços de viajantes que se deslocam sem saber ao certo o que esperar de seus destinos, delineando um trajeto que se forma na mesma medida em que é experimentado. Os desenhos de SANDRO NOVAES são mapeamentos de superfícies – papel ou arquitetura – por meio de um vocabulário formal restrito à linha. A partir desta unidade e de seus prolíficos arranjos o artista constrói presenças, percursos e projeções que se desdobram pelos planos. O lugar é ocupado e reestruturado pelas fábulas das linhas. Nesse sentido, podemos pensar que nossa percepção mostra-se mais responsável em moldar as espacialidades que ocupamos do que o contrário, como se poderia imaginar. A partir de registros fotográficos e em vídeo do Cristo Redentor da cidade do Rio de Janeiro, GABRIEL MENOTTI produziu versões em escala reduzida deste monumento – religioso, turístico e político – utilizando tecnologias de scanner e impressão 3D. Explorando a aura excessiva do Cristo, o artista investiga as perdas e preenchimentos que se operam nesse significativo processo de reprodutibilidade, integrado por aspectos de tradução e prototipagem. Quando o virtual adquire materialidade, curiosamente, o resultado escultórico não apresenta correspondência direta à sua origem imagética. Tentativas de leitura de um espaço, muitas vezes, enfrentam os limites da linguagem ou dependem da consciência de sua historicidade, nem sempre evidente. Atentando à invisibilidade a que estão submetidas muitas das questões ligadas à história da escravidão no Brasil, sobretudo suas mutações e sobrevivências no tempo presente, CHARLENE BICALHO tem investigado o tema sob a perspectiva de sua própria condição de mulher negra. Por mechas de cabelo que recolhe das pessoas, espelhos e fotografias de sua infância, e articulando vestígios identitários e elementos de matriz cultural africana, a artista reflete sobre uma narrativa que se desenrola tanto em sua própria pele quanto também integra uma longa história de exploração de um segmento étnico e social no país, desde sua invenção.  

Diante do inesgotável da experiência, as tentativas que se firmam admitem sempre a circunstancialidade dos gestos e empreendimentos. É dessas matérias tão provisórias e insignificantes que são constituídos os lugares.    

 

Júlio Martins, curador.

Júlio Martins

Júlio Martins é curador residente do Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo. Mestre em Artes Plásticas pela Escola de Belas Artes - UFMG, participou em 2009 do Programme Courants du Monde, na Maison des Cultures du Monde (Paris). De 2008 a 2011 foi Curador Geral do Museu Inimá de Paula (Belo Horizonte). Foi Curador Viajante do Rumos Artes Visuais 2011-2013, Instituto Itaú Cultural (São Paulo). Em 2012 realizou a exposição “through the surface of the pages ...” no DRCLAS, Harvard University (Cambridge). 

 

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